por Arthur Peacocke
Afirmo que, longe de a epopeia da evolução ser uma ameaça para a teologia cristã, é sim um estímulo para a teologia e também a base para uma compreensão mais abrangente e enriquecedora das inter-relações entre Deus, a humanidade e a natureza. Um argumento para a existência de Deus na “teologia-física” Anglo-Saxã (uma forma de teologia natural dos séculos XVIII e XIX), baseava-se em atribuir à uma ação direta de Deus o Designer, a existência dos intricados mecanismos biológicos. Este argumento desabou, quando Darwin e seus sucessores, mostraram que esse design aparente pode evoluir por processos puramente naturais, baseados em processos cientificamente inteligíveis. O impacto inicial das ideias de Darwin na teologia é usualmente situado na lenda do debate entre o então bispo de Oxford com T. H. Huxley, no encontro da British Association for the Advancement of Science, num sábado, 30 de junho de 1860. Chamo de “lenda”, porque estudos históricos indicam que a história é uma construção posterior de Huxley e seus biógrafos, porque o impacto desse evento, atualmente muito citado, não foi tão grande na época. Não se encontra menção a ele em qualquer publicação entre 1860 e 1880. Depois disso, afirmações triunfalistas, a favor de Huxley e pela independência da profissão dos cientistas, começaram a aparecer em vários “Diários” e “Cartas”. Então, isso é realmente uma lenda, e hoje também um ícone do assim chamado conflito entre a religião e a ciência, biologia em particular, que todos nós herdamos. Mesmo no século XIX, muitos teólogos anglicanos, evangélicos e católicos, receberam positivamente a proposta da evolução. Entre os primeiros, podemos mencionar Charles Kingsley, o qual em seu “Water Babies”, afirmou que Deus faz “as coisas fazerem a si mesmas”; dos últimos, podemos citar Aubrey Moore, que em “Lux Mundi” (uma publicação de um grupo de anglicanos de Oxford), em 1889, escreveu: “O Darwinismo apareceu, e, sob o disfarce de um adversário, fez o trabalho de um amigo. Conferiu à filosofia e à religião, um benefício inestimável, por mostrar-nos que podemos escolher entre duas alternativas. Ou Deus é onipresente na natureza, ou está ausente dela”. (23)
Deus e o Mundo
Imanência. Essa ênfase na imanência de Deus como criador, nos, com e dentro dos processos naturais do mundo desvendado pela ciência está certamente de acordo com tudo que as ciências têm revelado desde aqueles debates do século XIX. Um aspecto notável da explicação científica do mundo natura em geral, é o caráter contínuo da rede que foi construída ao longo do tempo: os processos aparecem em continuidade desde o início cósmico, no Big Bang, até o momento presente, e em nenhum ponto os cientistas modernos precisam invocar qualquer tipo de causa não natural para explicar suas observações e inferências sobre o passado. Os processos que ocorreram pode, como vimos, ser caracterizados como um surgimento, de novas formas de matéria, e uma organização hierárquica dessas formas por si mesmas, aparece no decorrer do tempo. Novos tipos de realidade que pode-se dizer terem emergido com o tempo.
A perspectiva científica do mundo, especialmente do mundo vivo, inexoravelmente nos imprime uma imagem dinâmica do mundo de entidades e estruturas envolvidas em mudanças contínuas e incessantes, e em processos que não cessam. Isso nos impele a re-introduzir em nosso entendimento da relação criativa de Deus com o mundo, um elemento dinâmico que está sempre implícita na concepção hebraica de um Deus vivo, dinâmico e em ação – mesmo que obscurecido pela tendência de pensar na criação como um evento passado. Deus voltou a ser concebido como criando continuamente, dando existência continuamente ao que é novo; esse Deus é sempre o Criador; porque o mundo é uma creatio continua. A noção tradicional de Deus sustentando o mundo em sua ordem geral e sua estrutura, agora foi enriquecida por uma dimensão criativa e dinâmica – o modelo de Deus sustentando o mundo e dando existência contínua aos processos que possuem criatividade inata, atribuída por Deus. Deus está criando em todos os momentos da existência do mundo, dentro e por meio da criatividade com a qual estão dotadas todas as coisas no mundo.
Tudo isso reforça a necessidade de re-afirmar com mais força do que em qualquer outra época nas tradições cristãs (e judaicas e islâmicas), que num sentido muito forte Deus é o criador imanente, criando dentro e por meio dos processos da ordem natural. Os processos por si mesmos, como descritos pelas ciências biológicas, são Deus atuando como criador, Deus qua Creator. Os processos não são o próprio Deus, mas a ação de um Deus no papel de criador. Deus dá existência no tempo divinamente criado, aos processos que por si mesmos se movem para o novo: assim Deus está criando. Isso significa que não temos que olhar para qualquer suposta lacuna nos processos, ou nos mecanismos, sobre os quais supostamente Deus estaria atuando como criador no mundo vivo .
Panenteísmo. (24) O teísmo filosófico clássico manteve a distinção ontológica entre Deus e o mundo criativo, que é necessário para qualquer teísmo genuíno, por conceber os mesmos como sendo de substâncias diferentes, cada um com atributos particulares. Havia um espaço fora de Deus, no qual as substâncias criadas vieram a existir. Esta forma de falar se torna inadequada por tornar extremamente difícil explicar a forma pela qual Deus está presente no mundo em termos de substâncias, as quais por definição, não podem estar internamente presentes umas nas outras. Deus só pode intervir no mundo num modelo desse tipo. Esta inadequação do teísmo clássico é agravada pela perspectiva evolucionária, a qual, como temos visto, requer que os processos naturais no mundo precisem ser considerados como ação criativa de Deus. Em outras palavras, o mundo está para Deus, assim como nossos corpos são para nós como agentes pessoais, com a ressalva de que a ontologia final de Deus como criador é distinta daquela do mundo (panenteísmo, e não panteísmo). Além disso, esse modelo pessoal de subjetividade encarnada (com essa ressalva essencial), representa melhor do que estamos impelidos a pensar, a ação constante de Deus no mundo, como vindo do interior, tanto em suas regularidades naturais quanto em quaisquer padrões especiais ou eventos. Estes três fatores – a forte ênfase na imanência de Deus no mundo, a preocupação de que Deus seja no mínimo, pessoal (como na tradição bíblica),e a necessidade de evitar o uso da substância nesse contexto – levam a uma relação panenteísta entre Deus e o mundo. Panenteísmo, é, de acordo com isso, “A crença de que o ser de Deus inclui e penetra o universo inteiro, então cada parte do universo existe nEle, mas (ao contrário do panteísmo), o ser de Deus é mais do que o universo, e não é limitado pelo universo”. (25)
Esse conceito tem fortes fundações filosóficas e é bíblico, como foi cuidadosamente argumentado por P. Clayton (26) – lembrando a estada de Paulo em Atenas, quando ele disse, a respeito de Deus, que “nEle nós vivemos, nos movemos e somos.” (27) Isso de fato está profundamente enraizado na tradição cristã oriental.
A Sabedoria (Sophia) e a Palavra (Logos) de Deus. Estudiosos bíblicos têm, em décadas recentes, têm enfatizado a significância dos temas centrais da assim chamada literatura de Sabedoria (Jó, Provérbios, Eclesiastes, Eclesiástico, e Sabedoria). Nesse conjunto de escrituras, a figura feminina da Sabedoria (Sophia), de acordo com J. G. Dunn, é uma forma conveniente de falar sobre Deus agindo na criação, revelação, e salvação; a Sabedoria nada mais é do que a personificação da atividade de Deus. (28) Essa Sabedoria dota alguns seres humanos com uma sabedoria pessoal que é enraizada em suas experiências concretas e em suas observações sistemáticas e ordinárias do mundo natural – o que podemos chamar de ciência. Mas não está confinada a isso, e representa a destilação das maiores experiências humanas, éticas e sociais, e também as experiências cosmológicas, já que o conhecimento sobre os céus também figurou entre os conhecimentos dos sábios. A ordem natural é avaliada como um presente e fonte de maravilhamento, algo a ser celebrado. Todos os tipos de sabedoria, gravadas como um padrão no mundo natural e na mente dos sábios, são apenas uma imagem pálida da sabedoria divina – esta atividade distinta de Deus em relação ao mundo.
No Novo Testamento, Jesus veio a ser considerado como “aquele que encarnou o poder criativo de Deus e a sua sabedoria salvadora (particularmente em sua morte e ressurreição), que podemos identificar como ‘o poder de Deus e a Sabedoria de Deus.’ [1 Cor. 1:24].”(29)
Esta sabedoria é um atributo de Deus, personificada como feminina, e tem um significado especial para teólogos feministas (30), um dos quais argumentou, com base numa ampla seleção de fontes bíblicas, que o feminino em Deus se refere a todas as pessoas do Deus cristão triuno. Então, a Sabedoria (Sophia), se torna a “face feminina de Deus, expressa em todas as pessoas da Trindade. “(31) No contexto presente, é pertinente que esse conceito importante de Sabedoria (Sophia), une intimamente a ação divina de criação, a experiência humana e os processos do mundo natural. Por conseguinte, constitui um recurso bíblico para imaginar o panenteísmo que temos defendido.
Assim também é com o conceito diretamente relacionado de Palavra (Logos) de Deus, o qual é definido como (32) existindo eternamente como um modo do ser de Deus, como ativo na criação, e como expressão própria do ser de Deus, e impresso nas costuras e tramas da ordem criada. Isso parece ser uma fusão do amplo conceito hebraico de “Palavra de Deus”, como a vontade de Deus na atividade criativa, em conjunto com o Logos divino do pensamento estóico. Este último é o princípio da racionalidade manifesto tanto no cosmos como na razão humana (chamada de logos pelos estóicos). De novo, temos uma noção panenteísta que une, intimamente, três faces de uma atividade integrada e encadeada: o divino, o humano e o (não humano) natural. É, desnecessário dizer, significativo que para os cristãos, este logos “se fez carne” (33), na pessoa de Jesus Cristo.
Um universo sacramental. A epopeia da evolução, como tenho me referido a ela, relata em sua extensão e na sua continuidade, como, ao longo das eras, as potencialidades mentais e espirituais da matéria têm se atualizado, sobretudo no desenvolvimento do complexo “cérebro humano num corpo humano”. O campo flutuante quântico original, ou a sopa de quarks, ou seja o que for, produziu em doze ou mais bilhões de anos, um Mozart, um Shakespeare, um Buda, um Jesus de Nazaré – e você e eu!
Cada avanço nas ciências biológicas, cognitivas e psicológicas, mostra os seres humanos como unidades psicossomáticas – pessoas. A matéria manifestou qualidades pessoais, numa combinação única de capacidades físicas, mentais e espirituais. (Uso “espiritual” como indicando relativos a Deus de uma forma pessoal). Para o panenteísta, que vê Deus trabalhando dentro, com e por meio dos processos naturais, este único resultado dos processos evolucionários, corrobora o fato de que Deus usa cada processo como instrumento de Seus desígnios, e como um símbolo da natureza divina, que é um meio de chegar aos Seus desígnios.[…]
[…]A Humanidade e Jesus Cristo numa Perspectiva Evolucionária
Vimos que a humanidade é incompleta, inacabada, está muito abaixo dos valores elevados da verdade, beleza e bondade que Deus, sua fonte final, teria que fazê-la atingir, para levá-la a uma relação harmoniosa com Ele. Ainda não estamos adaptados totalmente ao “ambiente” final e eterno de Deus.
Não foi muito tempo depois de Darwin ter publicado A origem das espécies, que alguns teólogos começaram a discernir o significado da afirmação cristã central e distintiva da Encarnação de Deus na pessoa de Jesus Cristo, como especialmente congruente com uma perspectiva evolucionária. Assim, mais uma vez em Lux Mundi, em 1891, encontramos J. R. Illingworth claramente afirmando: “… em linguagem científica, a Encarnação pode-se dizer ter introduzido uma nova espécie no mundo – o homem divino, transcendendo a humanidade passada, a humanidade transcendendo o resto da criação animal, e comunicando sua energia vital por processos espirituais, para as gerações seguintes…”(36). A ressurreição de Jesus convenceu os discípulos, inclusive Paulo, que essa união com Deus é o tipo de vida que não pode ser quebrada pela morte, e é capaz de estar em Deus. Jesus manifestou o tipo de vida humana a qual, como se acredita, pode se tornar vida abundante com Deus, não só aqui e agora, mas eternamente, além da barreira da morte. Por isso o seu imperativo “Sigam-me” constitui um chamado para a transformação da humanidade num novo tipo de ser humano transformado. O que aconteceu com Jesus, pode acontecer com todos.
Nessa perspectiva, Jesus Cristo, tem nos mostrado o que seria possível para a humanidade. A atualização dessa potencialidade pode ser considerada como a consumação dos desígnios de Deus, já manifesta de forma incompleta na humanidade em evolução.[…] Jesus Cristo é portanto considerado, dentro do contexto desse complexo de eventos do qual participou, como o paradigma revelado do que Deus planejou para a humanidade. Nessa perspectiva, ele representa a consumação desse processo evolutivo e criativo que Deus tem impulsionado dentro e por meio do mundo.[…]
[…]Na Terra, a epopeia da evolução é consumada pela Encarnação, numa pessoa humana, da auto-expressão cósmica de Deus, da Palavra de Deus – e na esperança que isso dá a todas as pessoas, de se unirem com a Fonte de todo Ser e Vir a ser, que é “o Amor que move os céus e as estrelas.” Gostaria de lembrar que, no segundo século, Irineu disse, nos convidando a contemplar: “A Palavra de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo, que, com seu imenso amor, quer fazer de nós aquilo que Ele mesmo é.” (Adv. Haer., V praef.)
A Theology of and for evolution – Arthur Peacocke
Não posso dizer que concordo exatamente com tudo o que o autor afirmou, mas coloco o texto aqui, para que gere reflexão. Segundo o autor, o ideal de Deus para o ser humano é o que foi encarnado em Jesus. Porém, cada ser humano, mesmo tendo potencial de transcender a si próprio, e se tornar mais parecido com Jesus, tem a liberdade de decidir se deseja participar desse caminho evolutivo ou não. Envolve coisas como negar a si mesmo, carregar a cruz, amar os inimigos, dar a outra face e etc, coisas que exigem que a pessoa esteja, todo o tempo, tomando decisões conscientes, no sentido de agir conforme esse modelo, e sujeito a falhar nesse processo, muitas vezes. O ser humano por si mesmo, não tende a seguir esse modelo naturalmente. E Deus não coage ninguém. Deus não impõe sua presença nos mecanismos do universo e da vida, não deixa claras as formas pelas quais atua no universo, para que cada ser humano possa escolher se deseja ver o mundo de uma perspectiva que inclui Deus, ou não, e viver de acordo com a perspectiva escolhida.
E os discípulos de Jesus, aqueles que, conscientemente, escolhem tentar viver esse modelo “alternativo” de ser humano proposto por Deus, são facilmente reconhecíveis. Se Deus não deixa óbvia a sua presença nos mecanismos que regem o universo e a vida no nosso planeta, na vida dos discípulos, a presença dEle se torna inegável. Os discípulos são Suas cartas vivas.