Mere Churchianity – Michael Spencer

setembro 26, 2010

Trechos da Introdução

[…]Quando você lê o título deste livro, pode pensar que é um livro para cristãos, e isso é normal, porque eu sou cristão. Não tenho dúvidas que os cristãos precisam ouvir o que tenho a dizer. Porém, este não é um livro cristão, de acordo com a tradição consagrada pelo tempo. Não vou dizer aos cristãos para serem mais legais, ter mais cuidado, serem mais generosos, tentar perdoar, fazerem mais para Deus e assim por diante, para que possamos ser melhores testemunhas de Jesus.

Tenho boas razões para ficar fora do padrão de livro cristão. Fui do igrejismo – o “fazer mais, ser melhor, parecer bom para merecer o amor de Deus – coisa que me transformou, e ao meu grupo de jovens, numa sala cheia de pessoas se empurrando. Então, se você é cristão, de qualquer forma leia este livro. Você vai encontrar uma abordagem sobre seguir Jesus, que não vai lhe pedir para fazer mais, fingindo ser justo. Penso que vai gostar disso.

Mas não estou escrevendo para membros de igrejas que estão felizes onde estão, ou para cristãos que estão fortemente comprometidos com o sucesso e propagação da igreja como uma organização. Escrevo, ao contrário, para aqueles que ainda estejam associados com a igreja, mas não encontram mais muito sentido no que a igreja diz. Não porque duvidem da realidade de Deus, mas porque duvidam que a igreja esteja realmente representando Jesus.

Estou escrevendo para as pessoas que ainda estão dentro, mas prestes a sair, ou para as que já saíram. Estou escrevendo para aqueles que estão de pé na entrada da igreja, prontos para sair para fora, dando ainda uma última olhada em volta.  Não viram a realidade de Jesus por um longo tempo, mas não podem deixar de crer que Ele está aqui. Em algum lugar. E estão inseguros sobre o que significará eliminar isso de si próprios.

Mere Churchianity foi escrito para pessoas que chegaram ao fim da linha com a igreja, mas não se afastaram totalmente de Jesus. No meio dos destroços da sua fé religiosa em forma de igreja, a realidade de Jesus de Nazaré persiste, e chama por eles. Estou falando para aqueles que tenham saído, os que vão sair, os que podem muito bem sair, e para aqueles que não sabem porque ainda estão andando por aí. E escrevo para os forasteiros que poderiam se sentir atraídos por Deus, se não fossem os cristãos.

[…]A espiritualidade na forma de Jesus não tem nada a ver com igrejismo. Seguir Jesus não requer que você jure lealdade a uma instituição religiosa. De fato, o histórico do cristianismo como organização, nos leva a perguntar: Como seria se o cristianismo fosse sobre Cristo? Se todas as peças estivessem no lugar e Jesus fosse o resultado? Se os cristãos se tornassem mais – e não menos – parecidos com Jesus? O que os ateístas veriam, se o cristianismo fosse algo que  o próprio Jesus pudesse reconhecer?[…]

[…]Quando estava crescendo na igreja, éramos constantemente avisados do quão importante era que as pessoas “vissem Jesus em nós.” Cantávamos essas palavras, e o pregador pregava sermões a respeito desse assunto. Ser uma “boa testemunha” para Jesus era assunto constante na pauta. Olhando para trás, para o que me formou espiritualmente, fui confrontado com uma ironia inacreditável. Enquanto falávamos sobre representar Jesus para o mundo à nossa volta, infelizmente, o seguinte era verdade:

• Não tínhamos ideia de quem Jesus era. Não estudávamos sobre ele. Não fazíamos perguntas. Éramos arrogantes e sempre com razão.

• Assumíamos que estar na igreja nos tornaria mais parecidos com Jesus. Programações de igreja e eventos, preenchiam nossos dias, e todos pensavam que mais igreja era equivalente a mais Jesus.

• Raramente estudávamos qualquer coisa na bíblia com o objetivo de ver como estar conectados a Jesus. A bíblia era abordada e ensinada, como uma coleção de versículos atomizados, e ninguém ligava suas muitas partes a esse grande tema: Jesus e o seu evangelho.

• Muitas vezes agíamos de forma desgraciosa e não amável, com pessoas que não acreditavam nas mesmas coisas que nós. Inacreditavelmente, às vezes agíamos maltratando outros, em nome de Jesus.

• Sabíamos muito pouco sobre o que Jesus estava fazendo na Terra, além de morrer e ressuscitar, dois mil anos atrás. Estávamos certos de que ser seus seguidores, significava que não fazíamos as coisas que os pecadores faziam. Quando alguém sugeria que estávamos cheios de justiça própria, fariseus moralmente corruptos, ficávamos ofendidos. Afinal, o que esses críticos sabiam? Eles não eram cristãos.

• Tudo o que todos tinham que fazer, era ler a bíblia para ver que estávamos com a razão, e todo o mundo estava errado.

Mere Churchianity: Finding Your Way Back to Jesus-shaped Spirituality – Michael Spencer


Uma teologia da evolução, e para a evolução

setembro 26, 2010

por Arthur Peacocke

Afirmo que, longe de a epopeia da evolução ser uma ameaça para a teologia cristã, é sim um estímulo para a teologia e também a base para uma compreensão mais abrangente e enriquecedora das inter-relações entre Deus, a humanidade e a natureza. Um argumento para a existência de Deus na “teologia-física” Anglo-Saxã (uma forma de teologia natural dos séculos XVIII e XIX), baseava-se em atribuir à uma ação direta de Deus o Designer, a existência dos intricados mecanismos biológicos.  Este argumento desabou, quando Darwin e seus sucessores, mostraram que esse design aparente pode evoluir por processos puramente naturais, baseados em processos cientificamente inteligíveis. O impacto inicial das ideias de Darwin na teologia é usualmente situado na lenda do debate entre o então bispo de Oxford com T. H. Huxley, no encontro da British Association for the Advancement of Science, num sábado, 30 de junho de 1860. Chamo de “lenda”, porque estudos históricos indicam que a história é uma construção posterior de Huxley e seus biógrafos, porque o impacto desse evento, atualmente muito citado, não foi tão grande na época. Não se encontra menção a ele em qualquer publicação entre 1860 e 1880. Depois disso, afirmações triunfalistas, a favor de Huxley e pela independência da profissão dos cientistas, começaram a aparecer em vários “Diários” e “Cartas”. Então, isso é realmente uma lenda, e hoje também um ícone do assim chamado conflito entre a religião e a ciência, biologia em particular, que todos nós herdamos. Mesmo no século XIX, muitos teólogos anglicanos, evangélicos e católicos, receberam positivamente a proposta da evolução. Entre os primeiros, podemos mencionar Charles Kingsley, o qual em seu “Water Babies”, afirmou que Deus faz “as coisas fazerem a si mesmas”; dos últimos, podemos citar Aubrey Moore, que em “Lux Mundi” (uma publicação de um grupo de anglicanos de Oxford), em 1889, escreveu: “O Darwinismo apareceu, e, sob o disfarce de um adversário, fez o trabalho de um amigo. Conferiu à filosofia e à religião, um benefício inestimável, por mostrar-nos que podemos escolher entre duas alternativas. Ou Deus é onipresente na natureza, ou está ausente dela”.    (23)

Deus e o Mundo

Imanência. Essa ênfase na imanência de Deus como criador, nos, com e dentro dos processos naturais do mundo desvendado pela ciência está certamente de acordo com tudo que as ciências têm revelado desde aqueles debates do século XIX. Um aspecto notável da explicação científica do mundo natura em geral, é o caráter contínuo da rede que foi construída ao longo do tempo: os processos aparecem em continuidade desde o início cósmico, no Big Bang, até o momento presente, e em nenhum ponto os cientistas modernos precisam invocar qualquer tipo de causa não natural para explicar suas observações e inferências sobre o passado. Os processos que ocorreram pode, como vimos, ser caracterizados como um surgimento, de novas formas de matéria, e uma organização hierárquica dessas formas por si mesmas, aparece no decorrer do tempo. Novos tipos de realidade que pode-se dizer terem emergido com o tempo.

A perspectiva científica do mundo, especialmente do mundo vivo, inexoravelmente nos imprime uma imagem dinâmica do mundo de entidades e estruturas envolvidas em mudanças contínuas e incessantes, e em processos que não cessam. Isso nos impele a re-introduzir em nosso entendimento da relação criativa de Deus com o mundo, um elemento dinâmico que está sempre implícita na concepção hebraica de um Deus vivo, dinâmico e em ação – mesmo que obscurecido pela tendência de pensar na criação como um evento passado.  Deus voltou a ser concebido como criando continuamente, dando existência continuamente ao que é novo; esse Deus é sempre o Criador; porque o mundo é uma creatio continua. A noção tradicional de Deus sustentando o mundo em sua ordem geral e sua estrutura, agora foi enriquecida por uma dimensão criativa e dinâmica – o modelo de Deus sustentando o mundo e dando existência contínua aos processos que possuem criatividade inata, atribuída por Deus. Deus está criando em todos os momentos da existência do mundo,  dentro e por meio da criatividade com a qual estão dotadas todas as coisas no mundo.

Tudo isso reforça a necessidade de re-afirmar com mais força do que em qualquer outra época nas tradições cristãs (e judaicas e islâmicas), que num sentido muito forte Deus é o criador imanente, criando dentro e por meio dos processos da ordem natural. Os processos por si mesmos, como descritos pelas ciências biológicas, são Deus atuando como criador, Deus qua Creator. Os processos não são o próprio Deus, mas a ação de um Deus no papel de criador. Deus dá existência no tempo divinamente criado, aos processos que por si mesmos se movem para o novo: assim Deus está criando. Isso significa que não temos que olhar para qualquer suposta lacuna nos processos, ou nos mecanismos, sobre os quais supostamente Deus estaria atuando como criador no mundo vivo .

Panenteísmo. (24) O teísmo filosófico clássico manteve a distinção ontológica entre Deus e o mundo criativo, que é necessário para qualquer teísmo genuíno, por conceber os mesmos como sendo de substâncias diferentes, cada um com atributos particulares. Havia um espaço fora de Deus, no qual as substâncias criadas vieram a existir. Esta forma de falar se torna inadequada por tornar extremamente difícil explicar a forma pela qual Deus está presente no mundo em termos de substâncias, as quais por definição, não podem estar internamente presentes umas nas outras. Deus só pode intervir no mundo num modelo desse tipo. Esta inadequação do teísmo clássico é agravada pela perspectiva evolucionária, a qual, como temos visto, requer que os processos naturais no mundo precisem ser considerados como ação criativa de Deus.  Em outras palavras, o mundo está para Deus, assim como nossos corpos são para nós como agentes pessoais, com a ressalva de que a ontologia final de Deus como criador é distinta daquela do mundo (panenteísmo, e não panteísmo).  Além disso, esse modelo pessoal de subjetividade encarnada (com essa ressalva essencial), representa melhor do que estamos impelidos a pensar, a ação constante de Deus no mundo, como vindo do interior, tanto em suas regularidades naturais quanto em quaisquer padrões especiais ou eventos. Estes três fatores – a forte ênfase na imanência de Deus no mundo, a preocupação de que Deus seja no mínimo, pessoal (como na tradição bíblica),e a necessidade de evitar o uso da substância nesse contexto – levam a uma relação panenteísta entre Deus e o mundo.  Panenteísmo, é, de acordo com isso, “A crença de que o ser de Deus inclui e penetra o universo inteiro, então cada parte do universo existe nEle, mas (ao contrário do panteísmo), o ser de Deus é mais do que o universo, e não é limitado pelo universo”. (25)

Esse conceito tem fortes fundações filosóficas e é bíblico, como foi cuidadosamente argumentado por P. Clayton (26) – lembrando a  estada de Paulo em Atenas, quando ele disse, a respeito de Deus, que “nEle nós vivemos, nos movemos e somos.” (27)  Isso de fato está profundamente enraizado na tradição cristã oriental.

A Sabedoria (Sophia) e a Palavra (Logos) de Deus. Estudiosos bíblicos têm, em décadas recentes, têm  enfatizado a significância dos temas centrais da assim chamada literatura de Sabedoria (Jó, Provérbios, Eclesiastes, Eclesiástico, e Sabedoria). Nesse conjunto de escrituras, a figura feminina da Sabedoria (Sophia), de acordo com J. G. Dunn, é uma forma conveniente de falar sobre Deus agindo na criação, revelação, e salvação; a Sabedoria nada mais é do que a personificação da atividade de Deus. (28) Essa Sabedoria dota alguns seres humanos com uma sabedoria pessoal que é enraizada em suas experiências concretas e em suas observações sistemáticas e ordinárias do mundo natural – o que podemos chamar de ciência.  Mas não está confinada a isso, e representa a destilação das maiores experiências humanas, éticas e sociais, e também as experiências cosmológicas, já que o conhecimento sobre os céus também figurou entre os conhecimentos dos sábios. A ordem natural é avaliada como um presente e fonte de maravilhamento, algo a ser celebrado. Todos os tipos de sabedoria, gravadas como um padrão no mundo natural e na mente dos sábios, são apenas uma imagem pálida da sabedoria divina – esta atividade distinta de Deus em relação ao mundo.

No Novo Testamento, Jesus veio a ser considerado como “aquele que encarnou o poder criativo de Deus e a sua sabedoria salvadora (particularmente em sua morte e ressurreição), que podemos identificar como ‘o poder de Deus e a Sabedoria de Deus.’ [1 Cor. 1:24].”(29)

Esta sabedoria é um atributo de Deus, personificada como feminina, e tem um significado especial para teólogos feministas (30), um dos quais argumentou, com base numa ampla seleção de fontes bíblicas, que o feminino em Deus se refere a todas as pessoas do Deus cristão triuno.  Então, a Sabedoria (Sophia), se torna a “face feminina de Deus, expressa em todas as pessoas da Trindade. “(31) No contexto presente, é pertinente que esse conceito importante de Sabedoria (Sophia), une intimamente a ação divina de criação, a experiência humana e os processos do mundo natural. Por conseguinte, constitui um recurso bíblico para imaginar o panenteísmo que temos defendido.

Assim também é com o conceito diretamente relacionado de Palavra (Logos) de Deus, o qual é definido como (32) existindo eternamente como um modo do ser de Deus, como ativo na criação, e como expressão própria do ser de Deus, e impresso nas costuras e tramas da ordem criada. Isso parece ser uma fusão do amplo conceito hebraico de “Palavra de Deus”, como a vontade de Deus na atividade criativa, em conjunto com o Logos divino do pensamento estóico.  Este último é o princípio da racionalidade manifesto tanto no cosmos como na razão humana (chamada de logos pelos estóicos). De novo, temos uma noção panenteísta que une, intimamente, três faces de uma atividade integrada e encadeada: o divino, o humano e o (não humano) natural. É, desnecessário dizer, significativo que para os cristãos, este logos “se fez carne” (33), na pessoa de Jesus Cristo.

Um universo sacramental. A epopeia da evolução, como tenho me referido a ela, relata em sua extensão e na sua continuidade, como, ao longo das eras, as potencialidades mentais e espirituais da matéria têm se atualizado, sobretudo no desenvolvimento do complexo “cérebro humano num corpo humano”. O campo flutuante quântico original, ou a sopa de quarks, ou seja o que for, produziu em doze ou mais bilhões de anos, um Mozart, um Shakespeare, um Buda, um Jesus de Nazaré – e você e eu!

Cada avanço nas ciências biológicas, cognitivas e psicológicas, mostra os seres humanos como unidades psicossomáticas – pessoas. A matéria manifestou qualidades pessoais, numa combinação única de capacidades físicas, mentais e espirituais. (Uso “espiritual” como indicando relativos a Deus de uma forma pessoal). Para o panenteísta, que vê Deus trabalhando dentro, com e por meio dos processos naturais, este único resultado dos processos evolucionários, corrobora o fato de que Deus usa cada processo como instrumento de Seus desígnios, e como um símbolo da natureza divina, que é um meio de chegar aos Seus desígnios.[…]

[…]A Humanidade e Jesus Cristo numa Perspectiva Evolucionária

Vimos que a humanidade é incompleta, inacabada, está  muito abaixo dos valores elevados da verdade, beleza e bondade que Deus, sua fonte final, teria que fazê-la atingir, para levá-la a uma relação harmoniosa com Ele. Ainda não estamos adaptados totalmente ao “ambiente” final e eterno de Deus.

Não foi muito tempo depois de Darwin ter publicado A origem das espécies, que alguns teólogos começaram a discernir o significado da afirmação cristã central e distintiva da Encarnação de Deus na pessoa de Jesus Cristo, como especialmente congruente com uma perspectiva evolucionária. Assim, mais uma vez em Lux Mundi, em 1891, encontramos J. R. Illingworth claramente afirmando: “… em linguagem científica, a Encarnação pode-se dizer ter introduzido uma nova espécie no mundo – o homem divino, transcendendo a humanidade passada, a humanidade transcendendo o resto da criação animal, e comunicando sua energia vital por processos espirituais, para as gerações seguintes…”(36).  A ressurreição de Jesus convenceu os discípulos, inclusive Paulo, que essa união com Deus é o tipo de vida que não pode ser quebrada pela morte, e é capaz de estar em Deus. Jesus manifestou o tipo de vida humana a qual, como se acredita, pode se tornar vida abundante com Deus, não só aqui e agora, mas eternamente, além da barreira da morte. Por isso o seu imperativo “Sigam-me” constitui um chamado para a transformação da humanidade num novo tipo de ser humano transformado.  O que aconteceu com Jesus, pode acontecer com todos.

Nessa perspectiva, Jesus Cristo, tem nos mostrado o que seria possível para a humanidade. A atualização dessa potencialidade pode ser considerada como a consumação dos desígnios de Deus, já manifesta de forma incompleta na humanidade em evolução.[…] Jesus Cristo é portanto considerado, dentro do contexto desse complexo de eventos do qual participou, como o paradigma revelado do que Deus planejou para a humanidade. Nessa perspectiva, ele representa a consumação desse processo evolutivo e criativo que Deus tem impulsionado dentro e por meio do mundo.[…]

[…]Na Terra, a epopeia da evolução é consumada pela Encarnação, numa pessoa humana, da auto-expressão cósmica de Deus, da Palavra de Deus – e na esperança que isso dá a todas as pessoas, de se unirem com a Fonte de todo Ser e Vir a ser, que é “o Amor que move os céus e as estrelas.”  Gostaria de lembrar que, no segundo século, Irineu disse, nos convidando a contemplar: “A Palavra de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo, que, com seu imenso amor, quer fazer de nós aquilo que Ele mesmo é.” (Adv. Haer., V praef.)

A Theology of and for evolution – Arthur Peacocke

Não posso dizer que concordo exatamente com tudo o que o autor afirmou, mas coloco o texto aqui, para que gere reflexão. Segundo o autor, o ideal de Deus para o ser humano é o que foi encarnado em Jesus. Porém, cada ser humano, mesmo tendo potencial de transcender a si próprio, e se tornar mais parecido com Jesus, tem a liberdade de decidir se deseja participar desse caminho evolutivo ou não. Envolve coisas como negar a si mesmo, carregar a cruz, amar os inimigos, dar a outra face e etc, coisas que exigem que a pessoa esteja, todo o tempo, tomando decisões conscientes, no sentido de agir conforme esse modelo, e sujeito a falhar nesse processo, muitas vezes. O ser humano por si mesmo, não tende a seguir esse modelo naturalmente. E Deus não coage ninguém. Deus não impõe sua presença nos mecanismos do universo e da vida, não deixa claras as formas pelas quais atua no universo, para que cada ser humano possa escolher se deseja ver o mundo de uma perspectiva que inclui Deus, ou não, e viver de acordo com a perspectiva escolhida.

E os discípulos de Jesus, aqueles que, conscientemente, escolhem tentar viver esse modelo “alternativo” de ser humano proposto por Deus, são facilmente reconhecíveis. Se Deus não deixa óbvia a sua presença nos mecanismos que regem o universo e a vida no nosso planeta, na vida dos discípulos, a presença dEle se torna inegável. Os discípulos são Suas cartas vivas.


Espiritualidade e ignorância

setembro 21, 2010

por Michael Spencer

Em algum lugar nas profundezas deste site (Internet Monk), contei como tinha sido a experiência de fazer parte de uma igreja cheia de seminaristas. Todo mundo sabia tanto, que era uma enorme dificuldade fazer qualquer coisa – mesmo algo simples como comprar selos – sem que houvesse um debate sem fim.

Óbvio, havia vantagens em ter tantas pessoas tão inteligentes na igreja. Nossa liturgia estava muito à frente à da maioria das igrejas, num nível intelectual e estético, era algo muito belo. Nunca tivemos problemas para conseguir professores para a escola dominical. Tínhamos problemas, na verdade, para conseguir que nossos professores de escola dominical não usassem gramática hebraica demais. E, é claro, porque éramos um grupo muito inteligente, desfrutávamos da benção de não sermos ignorantes.

Estou falando sério. Não é uma coisa legal ser ignorante, e os cristãos não devem abraçar a ignorância como se fosse uma virtude. Por mais problemas que houvesse, ficava feliz porque sempre havia alguém por perto para nos lembrar que decisões econômicas tinham conexões e repercussões no mundo real. Estava feliz porque éramos sensíveis ao racismo, sexismo, discriminação contra os deficientes, e por aí vai. Fiquei feliz, mesmo quando alguns cristãos homossexuais vieram falar com a equipe pastoral sobre suas preocupações. Eles não conseguiram o que queriam de nós, mas foi uma conversa da qual não tive vergonha de participar.

Agora eu vivo numa parte do país onde a ignorância de todos os tipos, é disseminada. A taxa de evasão escolar é de quase 30%. Levar adiante qualquer tipo de escola por aqui, é uma batalha.  E a maioria dos ministros e cristãos nessa região são sem instrução, ou, no máximo, autodidatas. Comparativamente falando, a ignorância pastoral de vários tipos é comum.

Meu amigo Walter é um pastor local. Ele nunca frequentou uma escola bíblica, muito menos uma faculdade. Não é muito mais do que um leitor. Está muito ocupado em seu ministério bi-profissional, tentando fazer pontas se encontrarem, e seu trabalho, família e igreja necessitam muito dele pra que seja um estudioso.  Muitos dos sermões dele são difíceis para mim, ouvir. Eles são no estilo da montanha e são, sinceramente, difíceis de entender. Na maioria deles, Walter pega uma figura ou história bem conhecida e aplica alguns princípios da escritura, para as experiências cotidianas da sua congregação.

O povo das montanhas enfrenta muitas dificuldades. As dificuldades incluem pobreza, drogas na comunidade, condições inseguras de vida, falta de oportunidades econômicas, cuidados médicos, crime e etc. Um pastor nas montanhas está sempre encarando uma congregação que, em sua maior parte, está ali porque se Deus não estiver perto, a vida vai desmoronar. O povo de Walter acredita que ele pode lhes apontar para o poder de Deus e para a Sua presença. Acreditam que o encorajamento do Senhor vem por meio do “homem de Deus”. Não estão ali normalmente para experimentar uma “sala de aula cristã” com um pastor como professor.

Obviamente, aqueles que são mais instruídos nas doutrinas da fé cristã vão me dizer que há muita coisa errada com o ministério de Walter. Ele precisa saber mais, muitas coisas e pregar a respeito delas fielmente. Sua congregação será fortalecida pela solidez doutrinal, de uma forma que não terão mais histórias bíblicas em suas lições. Sua ignorância deve ser reparada, e seu ministério, melhorado. Não vou discutir isso, mas contarei a vocês uma outra história sobre Walter.

Uma coisa que não contei a vocês, é que, dois anos atrás, eu estava no hospital com minha mãe morrendo, e precisava de um pastor. Naquela época, não tinha um. Acho que poderia ter ligado para qualquer um daqueles números de ministros que conhecia.

Acontece que Walter estava no hospital naquele dia, visitando membros da sua congregação e da comunidade, como era seu hábito. Ele me encontrou, minha esposa e minha mãe que estava morrendo.

Walter passou o dia todo ao meu lado. Encontrou um médico que deixou minha mãe ficar naquele hospital, em vez de ser transladada por via aérea, para Lexington. Ele me ajudou a falar com os médicos sobre o curso do tratamento de minha mãe, e eu concordei. Ele orou por mim. Foi um pastor para mim. Foi Cristo para mim.

Nenhuma vez Walter tentou fazer justificativas teológicas sobre os caminhos de Deus. Em momento algum pegou a bíblia (Nada de errado se tivesse feito isso, claro). Ele mesmo era a minha bíblia naquele dia. Colocou carne e sangue em Deus e o trouxe para mim. Pensou por mim quando eu não podia pensar claramente. Conhecia meu coração e me ajudou a ouvir meu coração naquele momento extremamente confuso. Me tratou com tanto amor e dignidade que trouxe alegria a um dos piores dias da minha vida.

Walter me mostrou naquele dia que se você está medindo a vida usando a forma como ela é vivida, e não analisando como as pessoas falam sobre o que elas acreditam, sabe muito mais a respeito de Deus do que eu. Ele nunca tinha lido nem chegado perto de nenhum dos livros que eu tinha lido, e não tinha o meu vocabulário ou qualificações. Ele tinha o livro que importa, e o seu Autor, dentro dele. Comparado com a personificação de Jesus do Walter, eu sou um idiota.

Aqueles dentre vocês que planejam escrever e me falar o outro lado da moeda, poupem sua tinta. Eu conheço o outro lado da moeda. O que estou dizendo para quem quiser ouvir, é que vejo pouca evidência de que muita instrução ou doutrinas corretas produzem pessoas parecidas com Cristo. Podem ter, e certamente têm um papel a desempenhar que não deve ser desprezado. Deus tem usado livros na minha vida, para me deixar mais parecido com Ele. Mas vários desses livros, eram teologicamente ignorantes e incorretos para os padrões do doutrinariamente correto e inteligente.

Passei anos ouvindo argumentos e contra-argumentos sobre como várias teologias, doutrinas e denominações podem dar a você o Jesus real, caso você aprenda um pouco ou se junte àquela equipe. Baseado nas vidas resultantes que eu via – começando pela minha própria – posso dizer que éramos todos uns “merdas”. Indivíduos que são como Jesus existem além das barreiras das denominações, educação e sofisticação. De fato, comecei a suspeitar de que Deus coloca suas impressões digitais todas sobre mais pessoas do “lado errado” das barreiras e não no “nosso lado” só para nos jogar para fora delas.   Ele deve gostar de me ouvir dizer se alguém que acredita ou não em determinada teologia/doutrina, não pode manifestar as impressões digitais de Jesus. (O Canal de Comédia do Paraíso poderá incluir muitas horas de coisas idiotas que digo).

Jesus diz que Deus ama pegar um Walter e me mostrar a espiritualidade real. Ele me ama quando descubro que posso ter um “A” numa prova de teologia, e ser um completo inútil num hospital, ou na vida de pessoas reais.  Ele me ama quando ouço o bater, o barulho, a inutilidade barulhenta de muitas das coisas para as quais dou valor, e então descubro um tesouro naquelas coisas que chamava de “lixo”.

Walter tem uma vida cheia de Jesus. Como Walter consegue ser tão repleto de Jesus? Ao querer Jesus e manter portas e janelas abertas para Ele. Não por aprender as linhas, as respostas e as versões em PowerPoint, e parar aí. Minha versão de Jesus parece mais um ensaio que escrevo. O Jesus de Walter – sua versão áspera, rude e ignorante de Jesus – é o negócio real.

Lembre que Jesus era um professor, mas ele nunca desprezou a classe. A vida era como uma escola, porque ele se recusava a isolar a verdade em compartimentos. Ele não tinha intenção de produzir discípulos que eram experts em teologia, mas inúteis numa UTI de hospital. Não tinha planos, de autorizar as especializações que usamos como desculpa para fugir do que realmente significa ser um cristão. Carregando a cruz e lavando pés, não se fala. Eles eram a vida de Jesus.

E se você é inteligente o suficiente para melhorar isso, você é muito inteligente. Seja idiota, irmão.

(NOTA: “Walter” não é uma pessoa real, mas uma combinação de diversos pastores das montanhas, que sei que possuem o caráter que estou descrevendo. E sim, um deles, passou o dia comigo no hospital, exatamente como descrevi.)

Dumb Up, Brother: A Spirituality of Ignorance – Michael Spencer – Internet Monk


The wave – Morton Rhue

setembro 20, 2010

Assisti na semana passada, um filme chamado “A onda”, baseado no livro homônimo de autoria de Morton Rhue. O livro se baseia em fatos reais, acontecidos nos Estados Unidos, mais precisamente na Califórnia, em 1967. E é extremamente didático no que se refere a mostrar o quanto é fácil manipular grupos de pessoas, desde que se usem os instrumentos e ferramentas apropriados. Em pouco tempo, um professor transforma um grupo de estudantes em fanáticos.

Abaixo, trechos de um comentário a respeito do filme:

“A Onda” é uma metáfora que se aplica, mais ou menos, a qualquer movimento de massa respondente aos apelos de um líder carismático ou de uma causa mítica irracional. Foi assim com os atos criminosos da Ku Klux Klan, o macartismo que desencadeou a “caça às bruxas”[3] perseguindo todos os supostos “comunistas” nos EUA, os governos de direita da América Latina com traços totalitários como foi o de Pinochet (Chile), o regime de apartheid da África do Sul (antes de Nelson Mandela), o processo de “limpeza étnica” conduzida pelos sérvios nos Bálcãs, os grupos neonazistas skinheads espalhados pelo mundo, os carecas do ABC paulista, e o movimento separatista do Iguaçu, no Paraná, entre outros menos conhecidos. Também, os partidos políticos neonazistas abrigados no regime democrático, na Áustria, chefiado por J.Haidern, e na França, por Jean Marie Le Pen. Devem ser, ainda, incluídos os líderes com traços protofascistas (Eco, 1995): Berlusconi, que passou pelo governo da Itália, líderes totalitários com traço imperial, como King Jon Il (Coréia do Norte), Assad (Síria), ou de milícias que ocupam o vazio do Estado (Hizbolá, Hamas, FARC, PCC) cujos atos truculentos faz semelhança com tantos movimentos fascistas italiano, espanhol, e mesmo o integralismo, no Brasil. No período da ditadura militar, depois 1964, no Brasil, surgem grupos de extrema-direita, como a TFP (Sociedade da Tradição, Família e Propriedade) e o CCC (Comando de Caça aos Comunistas), ambos com intenções de causar uma ‘onda’ de cooptação dos jovens para a sua luta ideológica e até terrorista[4].

Também líderes eleitos democraticamente, mas cujas manobras deixam transparecer traços totalitários (George W. Bush, Hugo Chávez, Mahmoud Ahmadinejad). Notamos que o traço comum entre estes líderes é a capacidade de fanatizar as massas por uma causa racional ou irracional, se valendo de métodos antidemocráticos como a censura, perseguições, prisões arbitrárias, elogios aos feitos do suposto ‘grande líder’, etc.

Também podem ser incluídos, hoje, como parte da onda protofascista (sic) os movimentos fundamentalistas (cristão, judaico, islâmico). O ‘fundamentalismo’[5] é a interpretação restrita  do livro sagrado de forma a repudiar tudo e todos que não concordem com tal interpretação; trata-se de um “terrível simplificador” que pretende explicar e fornecer uma moral para o passado, o presente e o futuro da humanidade. Lembrando alguns traços do fascismo ou ‘protofascimo’ elaborado por Umberto Eco (1995), têm conquistado visibilidade na mídia as paradas dos “homens-bomba”, (que incluem crianças e mulheres), e as escolas de doutrinação islâmica ou madrassas, usadas como perversão do islamismo e impondo à população a cultura obscurantista Talibã, no Afeganistão[6]. O auge de visibilidade dos efeitos da doutrinação islamofascista parece ser representado pela organização global da Al Qaeda, cujo líder Bin Laden, que nada tem de socialista ou marxista, diz lutar por uma causa  supostamente “santa” contra os  “infiéis do mundo ocidental”[7].

Abaixo, o discurso do professor Ross, no final do filme:

[…]“Vocês trocaram sua liberdade pelo luxo de se sentirem superiores. Todos vocês teriam sido bons nazi-fascistas. Certamente iriam vestir uma farda, virar a cabeça e permitir que seus amigos e vizinhos fossem perseguidos e destruídos. O fascismo não é uma coisa que outras pessoas fizeram. Ele está aqui mesmo em todos nós. Vocês perguntam: como que o povo alemão pode ficar impassível enquanto milhares de inocentes seres humanos eram assassinados? Como alegar que não estavam envolvidos. O que faz um povo renegar sua própria história? Pois é assim que a história se repete. Vocês todos vão querer negar o que se passou em “A onda”. Nossa experiência foi um sucesso. Terão ao menos aprendido que somos responsáveis pelos nossos atos. Vocês devem se interrogar: o que fazer em vez de seguir cegamente um líder? E que pelo resto de suas vidas nunca permitirão que a vontade de um grupo usurpe seus direitos individuais. Como é difícil ter que suportar que tudo isso não passou de uma grande vontade e de um sonho”.

O restante do comentário citado acima, você pode encontrar aqui:

“A onda” e o irracionalismo dos grupos – Raymundo de Lima

Vale a pena assistir o filme, e ler o livro.


O que incomoda os criacionistas?

setembro 19, 2010

por Donald E. Simanek

Motivações dos criacionistas e advogados do Design Inteligente

Criacionistas e divulgadores do design inteligente são claramente e fortemente motivados a terem seus pontos de vista reconhecidos como cientificamente respeitáveis, e a impor os mesmos no currículo científico escolar. Qual é a fonte dessa motivação? O que os incomoda tanto no modo como a ciência é ensinada?

Ciência e ensino de ciência não lidam com qualquer coisa sobrenatural, e então você pode pensar que isso não seria nenhuma ofensa a pessoas religiosas. Mas, de fato, é essa a grande razão do seu descontentamento. Ciência sem o sobrenatural, é, para eles, materialista, e por não incluir Deus, está implicitamente negando a importância dEle, ou até mesmo a existência de Deus. No mínimo, deixando Deus (ou qualquer entidade criadora/designer sobrenaturais) fora das ciências naturais, seria o mesmo que dizer que a natureza passa muito bem sem Deus.

A ciência não responde perguntas do tipo “por quê?”, mas apenas as do tipo “como?” As religiões geralmente tratam as questões “por quê?” como as mais importantes e mais significantes, e ficam ansiosos para fornecer suas próprias respostas a essas questões. Sendo assim, porque esses dois pontos de vista entrariam em conflito, se a ciência e a religião possuem seus próprios territórios? Os cientistas, mesmo quando são religiosos, geralmente não impõem seus pontos de vista às religiões. Porém, muitas pessoas religiosas, especialmente as evangélicas, sentem que devem impor seus pontos de vista em todos os lugares e a todas as pessoas. Mais ainda, ficam ofendidas quando alguém falha em reconhecer as “verdades” que para elas são auto-evidentes. Por muitos anos, fundamentalistas e evangélicos percebiam a si mesmos como marginalizados. Sentiam-se desrespeitados. Agora, pelo menos nos Estados Unidos, eles têm motivos para sentir que essa situação, pelo menos na esfera pública, está mudando. São poderosos, e estão prontos para usar esse poder para atingir seus objetivos sociais e políticos.

As religiões mais moderadas não estão entrando nessa. A maioria delas se sente confortável com a teoria da evolução. Qualquer um pode crer num criador/designer/Deus e aceitar a evolução. No final, Deus é sempre visto como perfeito e poderoso, e certamente capaz de desenhar um universo que se auto-sustenta, sem requerer manutenção ou consertos. Tal ponto de vista não requer que um Deus ocasionalmente invente novas espécies, como o design inteligente assume. Permite que o universo siga seu curso por meio de processos naturais. E são esses processos naturais que a ciência estuda e descreve.

Um universo auto-suficiente não fornece evidências para um designer, como vimos, por isso a evolução pode ser entendida somente por processos naturais. Os proponentes do DI querem encontrar evidências para um designer, e uma dessas evidências são as “lacunas” (transições inexplicáveis) na sequência evolucionária (incluindo lacunas no registro fóssil). Estas, dizem eles, são evidências de que um designer inteligente interveio para fazer novas espécies, ou para preencher uma lacuna que os processos naturais não poderiam preencher.

Resumindo, essas pessoas querem um designer inteligente “ativista”, o qual continuamente, ou no mínimo periodicamente, intervém na operação do universo. Um universo auto-funcional não poderia mostrar qualquer evidência de um designer onipresente.

Teoria das lacunas

Esse “deus das lacunas” cumpre seus propósitos? Vamos imaginar por um momento. Suponha que essas lacunas sobre as quais os criacionistas falam são tão sérias que nenhum processo natural concebível pode superá-las. Suponha que uma nova espécie surge subitamente num determinado momento, sem qualquer evidência de que possa ter se desenvolvido de outras espécies. [Não importa, nesse momento, que nenhuma espécie tenha surgido na história, sem que tenha havido qualquer semelhança biológica com espécies anteriores.] Então, dizem os proponentes do DI, isso é uma “evidência” de um designer que incluiu esse novo critério de design na timeline da biologia. O que? Como pode ser? Isso apenas indica que (a) não encontramos evidências que preencham essa lacuna, ou (b) não fomos inteligentes o suficiente para enxergar os processos envolvidos ou (c) talvez algum processo natural que nunca imaginamos antes, talvez até leis da natureza ainda desconhecidas para nós, estejam em operação. Se você listar todas as possibilidades, pode imaginar ainda toda sorte de cenários sobrenaturais fantásticos (mas fazendo isso, você não está fazendo ciência, mas algo mais parecido com ficção científica).

Então, vamos imaginar essa possibilidade, somente para fins práticos. Talvez existam outros universos. De tempos em tempos, um deles sofre intersecção com o nosso, e alguns animais alienígenas, plantas ou outros organismos vindos desse outro universo, atravessam a intersecção e passam para o nosso universo. Esse cenário pode ser provado? Não, a assim chamada evidência da lacuna não é específica o suficiente para suportar essa possibilidade particular, ou qualquer outra, nem para refutar qualquer outra possibilidade imaginável. Em outras palavras, tal “evidência” é inútil para demonstrar qualquer coisa que seja.

Suspensões ou interrupções nas leis naturais são chamadas de “milagres”. [Podemos nomear até mesmo coisas que não podem acontecer.] Seja lá como for que você chame isso, se suspensões das leis naturais viessem a acontecer, não nos diriam nada de útil sobre coisa alguma. Além disso, não temos provas concretas e cientificamente aceitáveis de que milagres têm ocorrido na história do universo.

Vamos observar isso de outra perspectiva. Como é que conseguimos aprender alguma coisa sobre o funcionamento da natureza?  Apenas porque a natureza trabalha de forma regular e sólida. Uma vez que descrevemos um comportamento numa lei da natureza, temos aprendido que podemos estar seguros de que a natureza não vai nos pregar uma peça e mudar aquela forma de comportamento. Mas se coisas irregulares e imprevisíveis acontecem aqui e agora (reais, e não apenas devidas a falhas nos dados), não podemos construir ciência com base em tais coisas. Os métodos da investigação científica seriam incapazes de nos dizer qualquer coisa sobre as razões para tais acontecimentos, ou para prever quando a próxima irregularidade poderia acontecer.

Como os criacionistas e defensores do DI agem para obscurecer esses fatos simples? Normalmente, enterram as feias deficiências das suas teorias numa pilha de disparates e ofuscação (tradução: lixo irrelevante). A decepção é assim. Pegue um conceito que é geralmente e acriticamente aceito por várias pessoas, mesmo não sendo suportado por qualquer evidência (como a ideia de um criador/designer sobrenatural). Então, aponte para evidências que supostamente o apoiam. O conceito precede a evidência, e já está enfeitado com atributos: inteligência, poder, invisibilidade e perfeição.  Os atributos são prontamente e acriticamente aceitos por pessoas que não são cientistas. Então, qualquer evidência que pareça preencher esses atributos é contada como uma evidência, que prova a existência de uma entidade “criadora/designer”. É por isso que os argumentos do DI têm efeito sobre aqueles que possuem pouco conhecimento de ciência e pouca experiência em reconhecer argumentos disparatados. Há uma grande diferença entre um argumento que apenas “parece bom”, e um argumento verdadeiramente bom.

Em ciência, as evidências precedem as teorias. Insistimos que as evidências devem ser especificamente o suporte de uma teoria. Se as evidências suportam uma ampla gama de teorias diversas de forma igualmente boa, não consideramos qualquer uma dessas teorias como persuasivas. Teorias que são concebidas apenas para “explicar” uma pequena parte ou um pedaço isolado de evidências, não são levadas a sério. Teorias científicas devem ser capazes de incluir fenômenos diversos, e de unificar uma diversidade de leis, ou seja, devem ter um horizonte amplo.

Até agora, os defensores do DI não apresentaram qualquer pesquisa que tenha sido de qualquer utilidade para a ciência. De fato, ninguém pode encontrar qualquer pesquisa científica que eles tenham feito. Suas teorias são uma filosofia mascarada de teoria científica, ainda em busca de qualquer utilidade científica.

Os marketeiros do DI dispendem muito esforço escrevendo livros e artigos sobre “evidências” da “complexidade irredutível” – exemplos específicos encontrados na natureza que parecem não ter sido originados pela evolução. Não convenceram os cientistas, e cada um dos seus exemplos foi desacreditado. Mas sua produção sobre o assunto, serve para distrair o público que não percebe as falhas fatais da sua cadeia de argumentos. Suponha  que de alguma forma sejamos capazes de demonstrar de forma conclusiva que existe uma criatura com complexidade irredutível. Esse fato poderia levar a lugar nenhum, pois seria uma evidência de – absolutamente nada em específico. Tal evidência certamente não poderia provar suas hipóteses do DI ou mesmo sugeri-las. Então, estão perdendo tempo ao se concentrar nesse assunto.

Naturalismo e materialismo

Você de vez em quando ouve os criacionistas queixarem-se do “naturalismo” dos cientistas e do ensino de ciência. Um dos objetivos declarados dos defensores do DI é introduzir uma cunha entre a “ciência naturalista” e uma “nova” ciência que reconhece e inclui Deus.

Os criacionistas veem o “naturalismo” como um inimigo a ser combatido em todos os “fronts”, e tentam substitui-lo com o “realismo teísta”. Em resumo, é uma estratégia para “colocar Deus por trás de todos os aspectos da atividade humana, ciência, política, leis, educação”. Eles temem que o “naturalismo e materialismo” da educação científica levem suas crianças para longe de Deus, levando-as a rejeitar Deus, e então fazer todo tipo de coisas más. Na verdade, acham que isso já está acontecendo. Em seus escritos, os criacionistas igualam o naturalismo e o materialismo. Não são bons em fazer distinções sutis.

A ciência atual adota o “naturalismo metodológico” (NM), no qual a ciência é conduzida sem fazer afirmações sobrenaturais e sem usar  conceitos sobrenaturais. A ciência simplesmente se mantém em silêncio a respeito de questões sobrenaturais ou teológicas. Isso não se faz como forma deliberada de rejeitar Deus, mas simplesmente porque hipóteses sobrenaturais não contribuem nem iluminam a ciência de nenhuma forma.  São inúteis para a ciência.  Simone Laplace coloca isso muito bem quando perguntado sobre o porquê não havia menção a Deus em um de seus livros. Ele respondeu: “Não tenho necessidade dessa hipótese.” Cientistas podem, e muitos têm, crenças religiosas. Podem abraçar qualquer hipótese sobrenatural que queiram “nas horas vagas”, mas sabem que elas não têm nenhuma utilidade e nenhum lugar justificado  no seu trabalho científico.

Os criacionistas caracterizam esse naturalismo metodológico, muito prático e necessário, da ciência, como uma conspiração deliberada dos estabelecimentos científicos para destruir a religião e banir Deus da mente das pessoas. Esta pode ser a principal motivação dos criacionistas e defensores do DI.

Propósito

Os teístas, de vez em quando, olham para o mundo em geral e dizem “Com certeza esse mundo natural maravilhoso e perfeito ao nosso redor, deve ter um propósito.” Isso levanta a questão de um “design proposital” por um “designer inteligente”. Se você responde com olhar incrédulo e dizendo “Por que deveria ter um propósito?”, eles geralmente não podem acreditar que você seja sério.

Meu sentimento é “Como pode alguém pode dizer com uma cara séria que esse mundo é perfeito?”  Mesmo um teísta deve perceber que imperfeições são abundantes na natureza, e com um pouco de reflexão, pode fazer sugestões para o seu aperfeiçoamento. Os criacionistas gostam de citar o olho humano como um exemplo de design maravilhoso e perfeição funcional. Mas nem todos enxergam dessa forma. Hermann Helmholtz, que fez pesquisas pioneiras sobre os sentidos humanos, uma vez comentou que se um fabricante tivesse mandado a ele um instrumento tão mal desenhado como o olho, ele o devolveria para ser refeito. Nós agora compreendemos a evolução do olho humano razoavelmente bem. Houve uma série de pequenas mudanças que aperfeiçoaram sua performance, mas nunca o tornaram perfeito. Pergunte a qualquer um que sofra de catarata, degeneração macular, ou qualquer outro tipo de afecções da visão, sobre o design perfeito do olho. Alguns olhos de animais se desenvolveram ao longo de um caminho evolucionário diferente, e possuem algumas características que são melhores do que aquelas  com funções similares no olho humano. Por exemplo, alguns animais marinhos possuem seus receptores sensíveis à luz na retina, na frente do suprimento de sangue, enquanto os humanos os têm atrás de uma rede de vasos sanguíneos que obscurecem uma porção da retina da luz incidente. Mas, uma vez que um caminho evolucionário é seguido, há poucas chances de “voltar atrás” para corrigir esses erros. Estamos presos a eles. Qualquer cirurgião ortopédico poderia facilmente imaginar um design biológico melhor para o joelho humano, para a articulação do quadril, ou para a espinha.

E quem pode dizer que o câncer é uma coisa bonita e maravilhosa? Cite qualquer uma das outras deformidades horríveis e doenças que podem afligir o ser humano, e então fale sobre a beleza e perfeição da natureza.  É claro, os teístas possuem todo tipo de formas de passar por cima dessas coisas: “São o resultado do pecado no Jardim do Éden” ou “São trabalho do Diabo.” Mas temos que nos ater à ciência, e não divagar em contos de fadas.

Se um teísta pergunta, “Você tem certeza de que tudo isso tenha surgido por acaso cego e sem propósito?”, tenho que responder que as coisas que vemos acontecendo no universo não mostram nenhuma evidência de propósito, e são, nesse sentido, “cegas”. Acaso e probabilidade desempenham papéis na natureza, mas a geometria e as leis naturais devem ser levados em conta e são responsáveis pela “aparência de design”, por isso, nunca é “mero acaso”.

Esta é a razão principal pela qual os criacionistas rejeitam a ciência. Eles querem um universo com propósitos, e a ciência mostra não haver evidência desse tipo de coisa.  Eles gostam de pensar que o objetivo principal é a humanidade, e que somos feitos “à imagem de Deus”. A ciência não tem nada a dizer a respeito de tais noções.

Uma sugestão aos teístas

Como eu disse, a ciência não prova nem refuta qualquer crença sobrenatural, porque fica em silêncio a respeito desses assuntos. Entretanto, ofereço essa sugestão aos teístas, que não tem nenhum peso científico por trás. Os teístas poderiam simplesmente assumir que seu criador/designer/deus planejou o universo por declarar algumas leis naturais e imaginando uma matriz geométrica de tempo e espaço para essas leis operarem, e então, deixando a “natureza seguir seu curso”. O resultado é o que nós vemos hoje. Este criador não precisou voltar a mexer nisso ao longo do tempo, e o resultado é inteiramente aquele gerado pelas leis que o criador estabeleceu.  O universo não mostra evidências de que poderia revelar a forma pela qual foi criado. Então, a ciência o estuda e descreve seu comportamento  sem entrar em conflito com a religião. A religião pode lidar com questões sobre propósito divino, a existência do mal, das doenças e outros assuntos teológicos que por si mesmos não interferem em nada na ciência. Esta é essencialmente a posição de muitos religiosos moderados, que não têm nenhuma discussão com a ciência [1].

Obviamente, isso nunca vai satisfazer os criacionistas.

Os cientistas não são culpados

Vamos admitir que alguns cientistas sejam culpados de invadir assuntos teológicos. Ultrapassaram os limites do cogniscível em especulações puramente hipotéticas. Alguns deles escreveram livros nos quais os limites entre a ciência estabelecida e a especulação selvagem não são fáceis de ver. Muitas vezes, eles usam a palavra “crença”, sem qualificá-la como uma “tentativa ou aceitação provisória”.  Não mostram claramente e cuidadosamente as limitações dos dados atualmente conhecidos, e as limitações resultantes em nossas leis e teorias. Alguns são conhecidos por proferir a palavra “verdade”, a qual é inteiramente desnecessária no discurso científico. Alguns deles aparecem em livros escolares. O fato é que fantasias e ficção vendem livros, enquanto fatos puros, não. O público é sedento pelo fantástico e miraculoso. Esse tipo de coisa tem feito da ciência um alvo fácil, para aqueles que possuem apenas conhecimento superficial sobre como a ciência é realmente praticada.

Notas e considerações finais

[1] Neste ensaio, escrevi muito pouco em defesa da evolução. Não há necessidade disso. Evolução é um fato firmemente estabelecido, e nenhum dos defensores do DI mudou ou desacreditou os fatos da paleontologia, arqueologia, biologia, bioquímica e etc. (Os criacionistas tentam fazer isso, mas em todas as vezes levam ovadas na cara por distorcer ou interpretar erroneamente os fatos, ou o que um amigo caracterizou como “mentir em defesa de Deus.”) O que os defensores do DI reclamam, é que os cientistas não veem necessidade de intervenção sobrenatural em todo esse processo, e nenhuma evidência aponta para tal intervenção sobrenatural. Os defensores do DI querem uma interpretação alternativa para os fatos, e querem afirmar também que “um designer inteligente é responsável por tudo”. Agora, a noção de designer inteligente possui pelo menos três interpretações. (1) O designer planejou tudo, e desde então tudo funciona por si mesmo, sem manutenção ou intervenção; ou (2) o designer guia cada etapa do processo, ou (3) o designer só precisa intervir no processo natural de vez em quando, produzindo aparentes “milagres” que não podem ser explicados pelas leis naturais.  As duas primeiras interpretações são inteiramente consistentes com um processo evolutivo regido por leis. Apenas a terceira muda o entendimento evolucionário convencional, por suas alegações de que há etapas na evolução que não se encaixam nas leis naturais. As duas primeiras interpretações não geram nenhum conflito entre DI e a ciência.

What’s bugging the Creationists? Donald E. Simanek

De novo, como já falei várias vezes aqui, mesmo que se creia nesse “designer” que: ou planejou tudo, estabeleceu leis, e deixou o universo seguir seu curso sozinho naturalmente, ou planejou e guia as etapas do processo evolutivo, a decisão de crer nisso e incluir um Deus que desempenharia o papel do designer, já extrapola os limites da ciência. É uma opção pessoal, que cabe a cada um decidir por ela, por meio da fé, somente. Não há evidências científicas de que tal designer exista, por mais que os defensores do design inteligente digam o contrário, e a ciência não se ocupa desse tipo de questão. O que não acho que seja uma opção inteligente, é montar um sistema de crenças que negue os fatos da ciência ou tente se contrapor a eles, ou que se proponha a substituir a ciência por uma pseudo-ciência embasada em filosofias religiosas, como é o caso de boa parte dos criacionistas e defensores do design inteligente, que negam a evolução. Não admitem a evolução, por razões puramente religiosas, e então criam uma “teoria alternativa”, NÃO CIENTÍFICA, e pior ainda, usam meios pouco honestos para fazer com que essas “teorias alternativas”, sejam vistas como passíveis de substituir as teorias realmente científicas. Seria mais inteligente por parte de tais pessoas, aceitar o conhecimento científico como ele é, absorver os novos conhecimentos que vão sendo adicionados com o tempo, e então tentar construir uma visão dinâmica a respeito desse “designer”, que não obrigue ninguém a fazer guerra contra a ciência, ou ver a ciência como um inimigo a ser combatido. Os religiosos que acham que a ciência é um inimigo a ser combatido, deveriam também impedir a si mesmos de desfrutar dos benefícios proporcionados por essa mesma ciência. Questão de coerência, certo? Você vê algum deles fazer isso? É aquela velha história das bruxas: “não acredito em evolução, mas que ela acontece, acontece; faço uso das aplicações e benefícios que o estudo do processo evolutivo traz para a humanidade,  mas continuo negando que ela seja um fato.” Lamentável.