Terminei de ler um suposto guia para a “espiritualidade sem religião”, escrito por Sam Harris. Só o fato de o autor ser ateísta, já me deu pistas do que podia esperar do livro. E ele não decepcionou. Negativamente falando, é claro.
A primeira pergunta que fiz é: por que diabos um ateu precisaria de um guia sobre espiritualidade? Fui ateísta a maior parte da minha vida, e na época simplesmente encarava o que chamavam de “vida espiritual” como mentira pura e simples; ou no máximo, uma ilusão confortável. Não ficava por aí rastejando atrás de “gurus” no Nepal e no Tibete, enquanto usava drogas alucinógenas, em busca de transcendência, como Sam Harris relata ter feito quando tinha 20 e poucos anos. Eu com 20 e poucos anos, estava cursando uma graduação, e não quase morrendo afogada, depois de cair na água sob efeito de drogas alucinógenas, num país oriental distante. Sam Harris cita Aldous Huxley, mas nem chega perto dele no que diz respeito a discorrer sobre espiritualidade. Seu principal erro foi ter desconsiderado as experiências da espiritualidade ocidental como merecedoras de crédito ou de serem levadas a sério, coisa que Aldous Huxley não fez. Sam Harris fala quase com deslumbramento dos seus ex-gurus indianos, nepaleses ou tibetanos e de suas experiências com drogas alucinógenas. É isso que ele chama de espiritualidade? Se minha espiritualidade for baseada na fé em um ser superior, ela é tratada como inválida pelo autor, mas ele mesmo considera valiosa a experiência espiritual provocada por alucinógenos. Afinal, quem precisa ter fé quando tem LSD e Ecstasy, não é mesmo? Quem precisa amar de verdade, quando uma droga oferece falso afeto? O problema é quando você descobre que existe algo chamado “vida espiritual” estando bem acordado e consciente, e não sob efeito de alucinógenos. Foi dessa forma que eu descobri. Esse é o tipo de experiência impossível de esquecer. É real, e não uma ilusão, ou alucinação que passa quando a droga deixa de circular no seu sistema.
Já faz muitos anos que usei substâncias psicodélicas, e minha abstinência nasceu de um respeito saudável pelos riscos que elas trazem. Contudo, aos vinte e poucos anos houve um período em que considerei a psilocibina e o LSD ferramentas indispensáveis, e passei algumas das horas mais importantes da minha vida sob a influência destas substâncias. Sem elas eu talvez nunca descobrisse que existe na mente uma paisagem interior que vale a pena explorar.
Não há como deixar de lado o papel da sorte. Se você tiver sorte, e se usar a droga certa, saberá o que é ser iluminado (ou chegará suficientemente perto disso para se convencer de que a iluminação é possível). Se tiver azar, saberá o que é ser insano clinicamente.[…]
Se você tiver sorte com o LSD ou o Ecstasy, segundo Sam Harris, se sentirá iluminado. Se tiver azar, poderá ficar louco, ou ter uma parada cardíaca e morrer, por exemplo. Entrar em coma também é uma possibilidade. É como brincar de roleta russa. Nem vou comentar sobre o uso de palavras como “sorte” e “azar” no texto de um “cético”. Nosso autor relata uma sensação de intenso amor por um amigo, enquanto fazia uso de Ecstasy, uma droga que por sinal, é ilícita. É ilícita não porque alguma bancada evangélica por aí pretende impedir nosso prazer, e sim, porque oferece muito mais riscos do que benefícios, tanto em curto quanto a longo prazo. Esta falsa sensação de afeto, é um dos efeitos colaterais da droga. O autor sabe disso. É uma sensação FALSA de afeto. Ela passa quando cessa o efeito da substância. Bem diferente do amor que vem do alto. Bem diferente do amor genuíno que uma pessoa é capaz de vivenciar, sem estar usando nenhum tipo de droga. Tentar juntar este falso afeto, quimicamente induzido por um alucinógeno, com o amor genuíno do qual o ser humano é capaz, como se ambos fossem a mesma coisa, é pura desonestidade intelectual. Que pena para você, Sam Harris, ter passado as horas que considera as mais importantes na sua vida, chapado.
[…]Portanto, o que quer que se possa ver ou sentir depois de ingerir LSD, provavelmente poderia ser visto ou sentido por alguém, em algum lugar, sem a droga.
Então por quê cargas d’água eu usaria uma droga que pode me fazer parar numa ala psiquiátrica, ou talvez, no cemitério?
O que fica, sobre esta tentativa de enveredar pela carreira de guru espiritual, feita por Sam Harris, é: o ateísmo segue incapaz de responder aos anseios e dúvidas mais profundos da humanidade. As camadas de verniz espiritual que o autor tenta colocar sobre sua proposta filosófica para um mundo onde alma, fé e Deus não existem, não são capazes de esconder isso. Como guru, Sam Harris é um cético razoável. Não se fazem mais ateus como antigamente.
A droga que Sam Harris usou, não abre portas da percepção, e sim, arromba essas portas. Viola as fechaduras, como um ladrão. Uma porta arrombada nunca mais funciona normalmente. Como Deus não é ladrão, nem brinca de roleta russa com ninguém, talvez a gente só consiga ver uma frestinha de luz. Continue a bater, em vez de colocar dinamite na porta pra forçar a passagem, correndo o risco de explodir junto com ela. Fica a dica. ; P
Hoje vemos em parte, um dia veremos face a face.