Introdução: Uma história de 400 anos – em quatro etapas (trechos)
Qualquer tentativa de escrever uma história, envolve uma série de julgamentos e decisões. A maior decisão é determinar o tom e ênfase apropriados. Como pode uma história ser compilada sem qualquer preconceito? Não pode, especialmente quando lida com um tópico tão controverso como a Inquisição. Não há dúvida, em absoluto, de que a Igreja e seus representantes chegaram a extremos no tratamento dos suspeitos sob a Inquisição, algumas vezes com grande prazer e sadismo. Mas isso não condena toda a instituição da Igreja.
Apesar de séculos de abuso contra descrentes suspeitos, hereges, bruxas e eventualmente judeus e muçulmanos, para não mencionar cientistas e artistas, ainda resta a instituição da Igreja Católica Romana, que tem uma história com muitas variações e cores. Junto com muitos papas e inquisidores cruéis, há missionários e santos inspirados, cujas vidas foram devotadas à causa do Cristianismo e da salvação das almas. Este trabalho continua até hoje, e com seu sempre presente paradoxo, também a instituição da Inquisição, agora com um nome mais gentil, e com autoridade fortemente supervisionada, mas ainda em existência até hoje.
O desafio em escrever uma história dessa instituição complexa, com seus bons e maus feitos em conjunto, com uma série de papas inspirados e outros muito maus e corruptos, é tentar relatar os fatos como são. Todo mundo tem preconceitos, e nenhum historiador pode esperar que os seus preconceitos não venham à tona. Na tentativa de relatar com honestidade informações factuais sobre eventos e pensamentos no contexto da época, é possível evitar somente os extremos do preconceito. No caso da Inquisição, há dois extremos desse tipo que devem ser evitados.
O primeiro extremo é aquele dos fiéis sem questionamentos, que se tornam os apologistas da Igreja e até mesmo dos atos dos inquisidores, nas antigas câmaras de tortura em toda a Europa. Os apologistas tendem a argumentar que os abusos não eram generalizados como muitos acreditam, ou que a tortura raramente resultava em morte para o acusado, ou que outros tipos de punição que se aplicavam na mesma época eram piores que os usados pela Inquisição. Os apologistas baseiam tais argumentos numa crença de que a igreja tem sempre existido para fazer a obra de Deus, e que colocar a Inquisição sob uma visão negativa é contrário a esse propósito. Para esse tipo de crente, pode ser muito difícil aceitar que a instituição da igreja foi por vezes, durante seus 2000 anos de história, dirigida por muitos maus jogadores.
No extremo oposto, está o indivíduo que é completamente anti-igreja e especificamente anti-católico. A tendência para esse tipo de indivíduo é encontrar os piores exemplos dos extremos, e expor somente os piores atores na história da Inquisição, colocando a igreja inteira sob a mesma égide de maldade e abuso. O efeito de ambos é obscurecer a história e aumentar a dificuldade de documentação. Por essa razão, contar a história envolve um ato de equilíbrio, um esforço para permanecer em algum lugar entre esses extremos, procurar por fatos que não só contem a história honestamente, mas também forneçam explicações a respeito dos bastidores, que possam lançar luz não só no que aconteceu, mas também porque aconteceu.[…]
[…]Como foi que a Igreja evoluiu de representante da filosofia pacífica de Cristo nesse tipo de poder autoritário global? Como forma de responder às heresias, a progressão da igreja, da não violência a queimar pessoas em estacas, pode ser traçada no tempo, quando a igreja alinhou a si mesma com o poder do Império Romano, para se tornar a Igreja Católica Romana. O ponto de vista de que a heresia e outros crimes contra Deus ou a igreja mereciam pena de morte, surgiu em torno do final do quarto século. Antes, a excomunhão era considerada uma punição adequada para crimes não temporais. Optato de Milevi foi o primeiro a citar exemplos do Antigo Testamento para justificar uma sentença de morte.[…]
[…]A “guerra justa” dos cristãos, baseada parcialmente em ensinamentos judaicos, agora fundida com o poder de Roma, e uma nova ideia de uma “Roma Santa” – abençoada pelo Cristianismo – uniu as crenças da Igreja com as políticas do Estado a respeito da pena capital. Descrentes e hereges eram vistos com o mesmo desprezo daqueles que cometeram crimes contra o Estado; a Igreja e o Estado tornaram-se uma coisa só e a mesma coisa, institucionalizada e permanente. Apesar do pensamento anterior e racional de Agostinho contra punições físicas, a Igreja desenvolveu um novo princípio, baseado nas políticas do Estado Romano, declarando a missão de uma guerra santa (bellum sacrum) e de uma guerra justa (bellum justum). Deste ponto em diante, a guerra mesma tornou-se uma forma aceitável de fé cristã. Então, a Inquisição foi o fruto da união de Igreja e Estado, numa entidade única do Sacro Império Romano. Dado o poder inerente a essa união, é fácil entender como a Inquisição cresceu e se expandiu.[…]
The Inquisition: a history – Michael C. Thomsett
Apesar de o livro tratar da parte católica da Inquisição, vale lembrar que houve também as versões protestantes, que não foram menos cruéis. O que explica a Inquisição, é a soberba humana de se achar no direito de punir o que considera “crimes contra Deus”, como se algum ser humano tivesse direito ou autoridade para “tomar as dores” do próprio Deus, e sair castigando, torturando e matando outras pessoas por causa disso. Em grande parte dos casos, não houve crime algum, muito menos contra Deus. Muita gente inocente foi torturada e morta, e muitos usaram a Inquisição como meio de se livrar de desafetos e inimigos. Outros, foram torturados e mortos apenas por pensarem diferente, por ousarem pensar por si mesmos, e expressarem livremente sua discordância com relação aos “dogmas” da instituição.
O que é verdade não precisa ser defendido por meio de força e violência. Se dizer cristão e, ao mesmo tempo, favorável a guerras “santas”, tortura e pena de morte, quer dizer que tem alguma coisa errada com esse cristão. Simples assim.